Quando viajamos, buscamos experiências, cenários, memórias…  A busca, nunca é igual para todos, porque o sentido da viagem é sempre singular. Mas até que ponto estamos realmente nos conectando com os lugares que visitamos? Muitas vezes, tratamos os destinos como meros cenários, consumindo sua paisagem, suas ruas, sua cultura, como se fossem transitórios — como se fossem “não lugares”.

Foi na graduação em turismo que me deparei pela primeira vez com esse conceito de “não lugar”. O antropólogo francês Marc Augé (1992) foi quem popularizou esse conceito. Para ele, “não lugares” são espaços de passagem, de trânsito, onde não se constrói identidade nem memória: aeroportos, rodoviárias, hotéis, shoppings. Lugares onde não pertencemos, apenas passamos. E foi justamente com esse ponto, que me senti absolutamente provocada e aqui faço também uma provocação: se para o turista o aeroporto é um não lugar, para quem trabalha ali todos os dias ele é, sim, um lugar; para quem foi pedido em casamento no saguão do aeroporto, aquele espaço também ganha significado, ou não?

Estação de trem – Padova, Itália. 12/2010

Me lembro que na minha defesa – que todo lugar, é sim um lugar -, usei imagens de um pedido de casamento feito no céu – em um salto de paraquedas, tem como dizer que aquele lugar – o céu – não é um lugar para esse casal?

Assim, a fronteira entre lugar e não lugar não é fixa. Como escreve o geógrafo Yi-Fu Tuan (1977), o espaço se torna lugar quando passa a ter sentido, quando é vivido, carregado de afeto e memória. Um espaço vazio pode se tornar um lugar para quem o habita, enquanto pode permanecer vazio de significado para quem apenas passa.

No turismo, esse debate ganha ainda mais força. O sociólogo John Urry (1990), em The Tourist Gaze, aponta como o olhar do turista transforma o mundo em espetáculo: escolhemos o que ver, o que fotografar, o que postar. O lugar, para o turista, vira um cenário. Mas e para quem vive ali?

E aqui cabe um incômodo importante: a romantização do “viajante” em contraposição ao “turista”. Muitos recusam a palavra turista, como se fosse sinônimo de superficialidade e consumo. Mas a ciência do turismo é clara: segundo a Organização Mundial do Turismo (OMT), turista é toda pessoa que se desloca por mais de 24 horas e menos de um ano para fora de seu local de residência, sem exercer atividade remunerada. Ou seja: todos nós somos turistas em algum momento. Mas seguimos instagramando para além de cenários, frases como “viajante, não turista”.

O antropólogo Dean MacCannell (1976) já criticava essa busca pela “autenticidade” no turismo: muitas vezes, o turista acredita estar vivendo o real, quando na verdade consome uma versão encenada para ele. Essa encenação só reforça a distância entre o visitante e a comunidade local.

Talvez o que mais nos incomode seja justamente a leveza com que nos relacionamos com os lugares. O sociólogo Zygmunt Bauman (2000) fala sobre a modernidade líquida e as relações frágeis, efêmeras e descartáveis. Isso não se aplica apenas às pessoas, mas também aos lugares: por onde passamos, fotografamos, consumimos, descartamos. Criamos relações líquidas com espaços que, para os habitantes, são sólidos, enraizados, vividos todos os dias.

O que quero trazer aqui é uma reflexão consciente: quando tratamos um lugar como transitório, como um “não lugar”, estamos, na verdade, falando sobre nossa própria incapacidade de nos conectar. Não é o lugar que é transitório — somos nós que passamos de forma transitória por ele.

Rodoviárias, aeroportos, hotéis: para alguns, pode ser sim só um ponto de passagem. Para outros, uma vida, rotina, trabalho… E falo com a propriedade de uma ex-hoteleira, que dedicou parte de sua vida trabalhando, vivendo e muitas vezes morando em hotéis, que para muitos era apenas um lugar de “passagem”, algo transitório, mas para mim – era a minha vida.

Para muitos: um corredor de hotel, para mim: minha casa. 03/2020 

E da mesma forma, destinos turísticos podem ser apenas mais um “check-in” para uns, mas para outros é a vida. 

O lixo deixado, a exploração dos recursos, a redução de uma cultura inteira a uma foto “instagramável” — tudo isso é responsabilidade de quem viaja sem consciência.

Ser turista não é o problema. O problema é ser turista sem reconhecer a sua condição. Todos somos turistas em algum momento — mas podemos escolher que tipo de turistas somos e seremos. Seja em Paris, no interior de Minas ou em um aeroporto de São Paulo, a reflexão que nos cabe é a mesma: reconhecer que aquilo que para nós pode ser apenas passagem, para alguém é lugar, memória, casa…

Bazar Isfahan-Irã 03/2023 – um não lugar ou lugar de passagem

A questão que fica é: quando você viaja, está apenas passando por mais um “não lugar” ou está permitindo que o espaço se torne lugar — para você e em respeito a quem o habita?

No fim, não existe o jeito certo ou errado de viajar, o turista ou viajante. Mas existe o jeito como escolhemos estar em cada lugar. Para além de colecionar experiências, viajar é também um convite à consciência: o que queremos deixar por onde transitamos? O lugar é sempre mais do que a nossa passagem por ele.

Referências

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